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A História em sua integridade: a propósito da Base Nacional
Comum Curricular
It's all now you see. Yesterday won't be over
until tomorrow and tomorrow began ten thousand years ago.
Tudo está no presente, entenda isso. Ontem só acabará amanhã
e amanhã começou há dez mil anos
. A pedido do Secretario da SEB/MEC Prof. Manuel Palácios, a
professora Maria Helena Rolim Capelato, presidente da Associação Nacional de
Historia (Anpuh-Brasil), solicitou a mim, como especialista, que emitisse Parecer
sobre a Base Nacional Comum Curricular,
no que se refere à área de História, num texto curto. O ensino da História,
tanto para a formação do professor, como, ainda mais, do cidadão, deve visar ao
conhecimento crítico do presente, para poder contribuir para um futuro melhor.
Por isso, a profundidade temporal e espacial deve ser a mais ampla e
abrangente. Não se pode entender o ser humano sem conhecer os hominídeos, cuja
antiguidade ultrapassa, em muito, os dez mil anos de William Faulkner. Isto já
o ressaltava Darwin, em meados do século XIX e, mais ainda, os estudos recentes
nas áreas mais variadas, da Biologia à Arqueologia. Tampouco convém limitar a
abrangência geográfica, pois desde os hominídeos e, mais ainda, nos últimos
milhares de anos, houve conexão constante entre as áreas mais afastadas do
globo. Portanto, uma História focada na nação, embora possa ser bem
intencionada, nunca poderá possuir a
devida conexão no tempo e no espaço. Os países que o têm feito, como no caso
notável dos Estados Unidos da América, têm produzido um fosso profundo entre
uma população que desconhece a História e a Geografia do mundo e uma elite que,
esta sim, produz conhecimento profundo e bem fundamentado dos mais variados
aspectos do passado, nas diversas partes do mundo. Um currículo escolar baseado
nesse modelo tenderá a aprofundar o fosso entre as pessoas comuns,
desconhecedoras do mundo, e os poucos que terão sempre acesso ao conhecimento
universal e que estarão habilitados à devida inserção no mundo. Trata-se, ainda,
do imperativo ético do fornecimento de um repertório cultural que não deve ser
apanágio de poucos, se estivermos preocupados com a igualdade de acesso ao
conhecimento e às oportunidades. A História universal, assim, está no centro do
ensino primário e secundário em países com as menores disparidades sociais,
como Portugal, Espanha, França, Alemanha, ou Suécia, pelo princípio de permitir
a todos conhecer o passado, próximo ou distante, para que todas as pessoas
tenham as mesmas oportunidades. O repertório é cultural e se refere tanto
àquilo que é mais recorrente em
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William Faulkner (1897-1962),
Intruder in
the dust
. (O intruso, 1948).
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uma tradição, quanto ao que lhe é estranho. Assim, na China
e na Índia, há estudo de obras com milhares de anos, algumas de caráter
religioso, mas que constituem fundamentos dessas civilizações. Este é o caso de
Confúcio na China, mas também das obras budistas, oriundas de outra
civilização, a indiana. Não se trata, pois, apenas de história do estado
nacional. Ao contrário, o conhecimento das tradições, do repertório, é a única
maneira de produzir um conhecimento crítico, não servil, sobre os usos do passado. A sociedade brasileira tem sido
caracterizada, em termos seculares, pela desigualdade. Um currículo centrado no
estado nacional tenderá a aprofundar o fosso entre os poucos que conhecem o
mundo para além do local e a maioria que terá ainda menos recursos cognitivos
para lutar para diminuir as desigualdades. Isto foi reconhecido pelos
educadores brasileiros e políticas de estado foram implementadas para o desenvolvimento de conhecimento de
primeira mão sobre o passado, em geral, e, em particular aquele relativo ao
repertório cultural da tradição. Assim, a Capes tem apoiado pesquisas no Brasil
e no estrangeiro sobre a Antiguidade, a Idade Média, mas também sobre os povos
ameríndios, como os maias e os incas, sobre a África, do Egito antigo às
civilizações subsaarianas anteriores e posteriores ao islamismo. Portanto,
tem-se incentivado o estudo das culturas da tradição brasileira (América,
Mediterrâneo, África), mas também as outras e diferentes, que tanto nos ensinam
por isso mesmo, pelo inventário das diferenças. O próprio programa Ciência sem
Fronteira também se insere nessa perspectiva de inserção no mundo. Por tudo
isso, um currículo centrado no estado nacional tenderá a aprofundar as
desigualdades sociais e a distanciar o país do objetivo compartilhado de
inserção no mundo contemporâneo. Enquanto na China milhões de pessoas, mais do
que em qualquer outro país do mundo, estudam e tocam Mozart, voltar as costas
ao repertório só poderá ter efeitos deletérios para a grande maioria das
pessoas. Ainda na mesma China, Heráclito e Lao Tse são estudados, pois sem eles
não haveria Mao. Os chineses, preocupados com a igualdade de oportunidade de
conhecimento, não abandonam um conhecimento universal, até mesmo por saberem
dos efeitos iníquos de uma formação centrada no estado nacional. Isto tudo está
a indicar que um currículo de História deveria incorporar maior profundidade temporal e espacial. Ao lado do
repertório tradicional que permite um conhecimento crítico da nossa sociedade
–
Antiguidade, Idade
Média, Modernidade, Contemporaneidade
–
deve não
restringir-se ao estado nacional, mas ampliar para incluir os hominídeos e a
Pré-História humana, as antigas civilizações asiáticas, mas também aspectos
essenciais, mas pouco conhecidos de outros períodos históricos, como as
civilizações islâmicas. Portanto, um currículo que almeje formar cidadãos bem informados não pode prescindir de um
referencia universal que extrapole o estado nacional. Não se trata, em um
parecer curto, de entrar em detalhes sobre o conteúdo da Base Nacional Comum
Curricular, mas, na essência, as páginas dedicadas à História abandonam o
objetivo de formar cidadãos com um conhecimento universal e, de forma tácita,
consagram uma formação superficial para a imensa maioria, deixando
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aos poucos a oportunidade de um conhecimento de significado
integrado ao mundo. Apenas a inclusão de uma perspectiva universal, que dê
conta do repertório da tradição e inclua um inventário de diversidades, poderá
resultar em uma educação menos excludente. Tal como está, contraria as
políticas de estado de inclusão social e de inserção mundial, praticadas há
tempo, e aprofundará as desigualdades. Sua reformulação deve, portanto,
incluir, de forma explícita e detalhada, os conteúdos essenciais do repertório universal,
dentre os quais, em particular: A antiguidade oriental e o surgimento das
antigas civilizações letradas (Egito, Mesopotâmia, Vale do Indo, Vale do Rio
Amarelo); as civilizações Mediterrâneas antigas (Fenícios, Hebreus e outros
povos semitas antigos; persas, gregos e romanos); A antiguidade tardia
Ocidental e Oriental (desintegração do império romano no Ocidente, reinos
germânicos no Ocidente, Bizâncio, crescimento do Islã e sua expansão); a Idade
Média (alta e baixa Idade Média no Ocidente, Império Bizantino, Islã e expansão
turca; a rota da Seda); o declínio da Idade Média, o renascimento e a
emergência da modernidade, das nacionalidades e a expansão europeia a
ocidente, pelo Atlântico (Portugal,
Espanha) e a oriente, até o Pacífico (Rússia); A modernidade, os conflitos
religiosos na Europa e o pensamento político e científico; O iluminismo, o
nacionalismo, as revoluções burguesas e os germes do imperialismo; a revolução
industrial, o imperialismo e a conquista do mundo pelo capital; o conflito imperialista,
as guerras imperialistas (século XIX e primeira e segunda guerra mundiais); o
mundo da guerra fria (1947-1989) no cenário mundial; o mundo multipolar (1989
em diante). Estes temas todos são essenciais, ainda que não seja uma lista
exaustiva, para que um jovem brasileiro
possa entender aspectos essenciais da sociedade brasileira, como os
referenciais judaico-cristãos e clássicos, suas releituras e reelaborações
posteriores, assim como a conexão em acontecimentos locais e o que se passava
no mundo. Um único exemplo bastará: não se pode explicar a ditadura militar
(1964-1985) sem referência à Guerra Fria. Além disso, pelo princípio da
diferença, será importante constar do currículo aquilo que é diverso na origem,
mas que, hoje, no século XXI, está em relação, como: a história e cultura
chinesa, tanto por seu valor em si, como pelo papel da China hoje; o mesmo vale
para a Índia, com sua imensa riqueza histórica e cultural, mitológica e ritual;
assim, também, as civilizações ameríndias e africanas pré-históricas, pois
estão na gênese de parte significativa das concepções de mundo e cultura no
Brasil e são pouco conhecidas. Em todos
os temas de interesse universal, deve buscar-se a inclusão dos grupos
subalternos, das mulheres, dos comportamentos minoritários, da cosmovisões
também minoritárias. A historiografia brasileira sobre a Antiguidade, a Idade
Média e a Modernidade tem se destacado, aqui e lá fora, também por estudar
esses aspectos, sempre com o apoio das agências de fomento e das universidades.
O mais importante, deve ressaltar-se, é que tais conteúdos da História
universal devem estar explicitados e detalhados em um currículo, como é o caso
em outros países que se preocupam com a inclusão social, de modo que esse
conhecimento universal não fique restrito a poucos.
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Campinas, 17/02/2016
Pedro Paulo A.Funari
Pedro Paulo A. Funari é bacharel em História (1981), mestre
em Antropologia Social (1986), doutor em Arqueologia (1990), pela USP,
livre-docente em História (1996) e Professor Titular (2004) da Unicamp,
coordenador do NEPAM (05/2014). Professor de programas de pós da UNICAMP e USP,
Distinguished Lecturer University of Stanford, Research Associate - Illinois
State University, Universidad de Barcelona, Université Laval (Canadá), líder de
grupo de pesquisa do CNPq, assessor científico da FAPESP, orientador em
Stanford e Binghamton, foi colaborador da UFPR, UFPel, docente da UNESP
(1986-1992) e professor de pós das Universidades do Algarve (Portugal),
Nacional de Catamarca, del Centro de la Provincia de Buenos Aires e UFRJ.
Supervisionou 16 pós-doutoramentos, 33 doutoramentos, 36 mestrados, hoje
destacados pesquisadores e líderes em instituições de prestígio (London School
of Economics, Université de Mulhouse, Universidad del Norte (Barranquilla,
Colômbia), UNICAMP, USP, UNESP, UFF, UFMG, UFPR, UFRJ, MASJ, UEL, UFPel, UCS,
UEMG, UEM, UMESP, Uniplac, PUCPR, FESB, UNIFAP, UFS, UNIP, Unifesp, U. Einstein
de Limeira, UFG, UFBA, UNIFAL, UFMA, UFPA, UFOP, Museu Nacional - UFRJ, UEG,
UFPE, UFMS, Museu da Bacia do Paraná, UFAL, Unip, F.I. Maria Imaculada, Museo
Nacional de Colombia). Na Unicamp, Coordenador do Núcleo de Estudos
Estratégicos (2007-2009), representante do IFCH na CADI (2005-2009) e dos
titulares no DH (2015), membro da CAI/Consu (2009), Assessor do Gabinete do
Reitor e Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp (2009-2013),
apresentador do programa da RTV Unicamp "Diálogo sem fronteira",
desde 2011, com mais de 200 entrevistas. Participa do conselho editorial de
mais de 50 revistas científicas estrangeiras e brasileiras. Publicou e
organizou mais de 90 livros e reedições e de 250 capítulos nos Estados Unidos,
Inglaterra, Austrália, Áustria, França, Holanda, Itália, Espanha, Argentina,
Colômbia, Brasil, entre outros, assim como mais de 590 artigos, resenhas e
notas em mais de 130 revistas científicas estrangeiras e brasileiras
arbitradas, como Current Anthropology, Antiquity, Revue Archéologique, Journal
of Social Archaeology, American Antiquity, American Journal of Archaeology,
Dialogues d' Histoire Ancienne, Bonner Jahrbücher. Foram publicadas mais de 70 resenhas de seus livros
(< 30 delas em revistas estrangeiras de
ponta). Projetos conjuntos com pesquisadores estrangeiros resultaram na
visita de numerosos estudiosos, das principais instituições de pesquisa do
mundo (Universidades de Londres, Paris, Saint Andrews, Boston, Southampton,
Durham, Illinois, Barcelona, Havana, Buenos Aires, Londres, CNRS). Membro dos conselhos de
Encyclopaedia of Historical Archaeology, Oxford Encyclopaedia of Archaeology e
Encyclopaedia of Archaeology (Academic Press). Participou de mais de 400
eventos e organizou mais de 115 reuniões científicas. Foi Secretary, World
Archaeological Congress (2002-2003), membro permanente do conselho da Union
Internationale des Sciences Préhistoriques e Protohistoriques (UISPP) e sócio
da ANPUH, ABA, SAB,
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SBPH, SHA, SAA, WAC, ABIB, AAA, Roman Society, académico
estranjero de la Academia de Historia de Cuba desde 2013. Líder de Grupo de
Pesquisa do CNPq, sediado na Unicamp e vice-líder de dois outros. Editor de
coleção de livros com 33 volumes, com apoio acadêmico da FAPESP, CNPq, CAPES,
FAPEMIG e UNICAMP. Co-editor
da Coleção Historical Archaeology in South America (University of Alabama
Press). Tem experiência na área de História e Arqueologia, com ênfase em
História Antiga e Arqueologia Histórica, além de Latim, Grego, Cultura Judaica,
Cristianismo, Religiosidades, Ambiente e Sociedade, Estudos Estratégicos,
Turismo, Patrimônio, Relações de Gênero, Estudos Avançados. Google Scholar 3490
citações, índice H = 29 e i10 = 78, total de auxílio e bolsas FAPESP: 113 (58
auxílios e 48 bolsas concluídos), academia.edu: < 3.050 seguidores e <
54.300 consultas, RG score 20.25