DA CONVERSÃO À INSTAURAÇÃO DA INQUISIÇÃO
Os
conflitos entre cristãos e judeus ascenderam com maior força a partir do ataque
dos comerciantes cristãos apoiado pelo clero fanático, apontando os judeus como
estrangeiros e economicamente fortes
concorrentes.
Portanto, o marco para o aumento dos conflitos foi a ascensão da dinastia de Avis, refletindo na elevação do discurso antijudaico, momento em que o quadro político e econômico começava a mudar rapidamente em virtude da expansão.
Portanto, o marco para o aumento dos conflitos foi a ascensão da dinastia de Avis, refletindo na elevação do discurso antijudaico, momento em que o quadro político e econômico começava a mudar rapidamente em virtude da expansão.
Entre
os séculos XIV e XV ocorrem algumas oscilações na relação entre judeus e cristãos,
no qual Maria Ferro Tavares define três fases: Na primeira fase, a segregação social
se fez presente, em especial nas medidas legislativas dos reinados de D. João I
e D. Duarte, a que foi seguida por um período de quarenta anos de integração e
participação da minoria judaica na sociedade portuguesa. A segunda fase foi
marcada pela contestação do poder econômico dos judeus no reinado de D. Afonso
V. A terceira fase, definida entre o governo de D. João II e a expulsão dos
judeus do território português em 1496, é marcada pela instabilidade entre a
minoria judaica e a maioria cristã, agravada pela entrada dos conversos e
judeus castelhanos. Já na virada do século XV para o século XVI, três fatores principais
condicionaram as mudanças no contexto lusitano e marcaram as relações entre os
cristãos-novos e os cristãos velhos: a conversão forçada em 1497, os levantes antijudaicos
e, em especial, o processo de instalação da Inquisição em 1536.
O
primeiro fator que condicionou as mudanças no cenário português teve início com
a morte de D. João II, subindo ao trono português seu sobrinho, o Conde de
Beja, desde então D. Manuel I (1495-1521), que cobiçava a possibilidade de unir
os reinos ibéricos por meio de seu casamento com Isabel, filha dos reis da
Espanha e viúva do desafortunado príncipe português D. Afonso. O seu desejo foi
aceito pelos reis católicos, que, entretanto, impuseram duas condições: A
primeira seria aliar-se à Espanha contra a França. A segunda seria expulsar todos os
judeus de Portugal. Com relação à primeira condição, D. Manuel se comprometeu
em ajudar a Espanha apenas no caso de seu território ser invadido pela França,
não estabelecendo aliança formal. Até porque mantinha um bom relacionamento com
a corte de Paris. A segunda condição, era na verdade uma imposição política
feita pelos monarcas espanhóis Fernando e Isabel, que tinham visto boa parte
dos judeus expulsos da Espanha migrarem para Portugal. Portanto, o reino
português estava agora envolvido com a perseguição aos judeus residentes em seu
território. A única saída
vislumbrada
por D. Manuel era tornar os judeus cristãos, visto que a expulsão seria contra
a política do Reino, pois a saída de tanta gente representava perda de grande
monta. Nesse sentido, é bom ressaltar que o casamento foi de interesse,
primeiramente, de D. Manuel, ambicionando em reunir sob seu poder toda a
Península.
Para
D. Manuel, o édito de expulsão era uma forma de satisfazer os interesses de sua
futura Rainha. No entanto, como não estava satisfeito com a saída da população judaica
de Portugal, recorreu a uma série de recursos para que tal saída não
acontecesse, limitando a saída em barcos com comandantes de sua confiança,
impondo a obrigação de apresentação da licença real para partir, procurando com
isso evitar a crise e empobrecimento do reino. A saída dos judeus foi apressada
pela futura rainha de Portugal, pois esta só entraria em Portugal no mês de
Outubro, quando já nenhum judeu mais residisse neste reino, portanto os últimos
judeus teriam saído no mês de Setembro. Em 30 de novembro de 1496, foi assinado
o contrato matrimonial entre D. Manuel e Isabel, ordenando que todos os judeus
deixassem Portugal no prazo de dez meses, até fins de outubro de 1497, sob pena
de morte e confisco de bens, garantindo a saída livre e a liberdade no
transporte dos bens. Porém, o Rei voltou atrás e preferiu a conversão dos judeus
ao invés de sua saída. A primeira ação nessa direção foi afastar os menores de catorze
anos das famílias judaicas e integrá-los às famílias cristãs, batizando outra
parcela dos adultos à força, que passaram a ser denominados de cristãos-novos.
Chamados assim pelos já cristãos, que passaram a reservar para si a qualidade
de cristãos velhos. A ideia era miscigená-los, obrigando os judeus a
permanecerem no reino.
Em
1497, para tornar mais fácil o convívio inicial após a conversão forçada, D. Manuel
determinou que não houvesse restrições aos judeus por vinte anos no tocante aos
procedimentos religiosos e demais atividades, demonstrando, assim, que não
queria a saída do povo judeu das terras portuguesas. Dessa forma, ficando em
território português, os cristãos-novos compareciam aos cultos e mantinham seus ritos
mosaicos, sendo ao mesmo tempo judeus e católicos. A partir de 21 de abril de
1499, os conversos foram impedidos de sair dos domínios do rei sem o seu aval,
sob perda dos bens, o que lhes restringia as possibilidades de movimentação e,
além disso, D. Manuel, anulando as ordenações de D. Afonso V, restringia a
transmissão da herança somente para os que tivessem se batizado antes da ordem
régia. Passado o prazo de vinte anos, os denunciados seriam, em caso de culpados,
punidos com confisco de bens, entregues aos seus herdeiros cristãos,
eliminando, assim, as diferenças entre os cristãos-novos e velhos. Todos, por
meio desta lei, teriam o perdão geral pelos crimes cometidos desde que se
convertessem. Nesse sentido, o casamento foi o xeque-mate dos Reis Católicos
espanhóis ao rei português. A lei de 1497, na prática, não dava espaço para os
cristãos-novos, pois os dominicanos incitavam a população cristã contra os
criptojudeus.
O
segundo fator que condicionou as mudanças e intensificou as diferenças entre cristãos-novos
e cristãos velhos no contexto lusitano, teve início em 1503. A partir desse ano
ocorreram grandes crises no governo de D. Manuel, fomes que se estenderam até o
governo de D. João III e foram usadas como argumentos para atacar os conversos,
considerados grandes especialistas no negócio dos cereais. Nesse ambiente, os
conflitos entre cristãos-novos e cristãos velhos se tornaram frequentes,
estimulados pela Igreja e, na terceira década do século XVI, intensificada pelo
governo. Evidentemente, que esses conflitos se intensificaram em decorrência do
aumento da população de cristãos-novos em Portugal, levando, inevitavelmente,
aos atritos com os cristãos velhos.
Em
1504, os cristãos-novos foram agredidos em um motim em Lisboa, sendo os agressores
degredados para a ilha de São Tomé. Em 1505, a desordem ocorreu com maior densidade,
com a demolição de uma sinagoga que ainda se mantinha em Évora, acusando os
cristãos-novos de celebrarem ainda a páscoa judaica com seus rituais. Muitos
cristãos foram presos, mas sua rápida liberdade causou ainda mais revoltas nos
anos seguintes, as quais eram abafadas e comprimidas pelo fanatismo. Os
cristãos-novos portugueses foram hostilizados e comumente tachados de falsos,
perigosos e dissimuladores por terem sangue judeu. O ódio entre cristãos velhos
e novos culminou em uma chacina que teve lugar em Lisboa no ano de 1506, muitos
conversos saqueados e mortos, depois de um suposto milagre na Igreja de S.
Domingos, onde alguns fiéis julgaram terem visto um brilho diferente no
crucifixo e, portanto, um bom sinal de prodígio, fato que teria sido contestado
por um cristão-novo explicando que isso teria sido um simples efeito de luz. O
cristão-novo foi morto a golpes e queimado na fogueira publicamente. O ódio se
alastrou pelas ruas e se estendeu por três dias, onde muitos conversos foram
mortos e queimados. O rei reagiu com medidas que penalizavam todos os moradores
de Lisboa com multa de um quinto de todos os seus bens. Pela grande
participação de mulheres na chacina, o rei decretou que vinte ou trinta delas
fossem condenadas a pena de morte. Entre as medidas tomadas pelo rei, também estava
incluído o fechamento do mosteiro de S. Domingos de Lisboa, de onde os frades instigaram
o início da chacina. A repreensão por parte do governo foi feita para acalmar
os ânimos aviltados. D. Manuel castigou os participantes da revolta e protegeu
os criptojudeus com concessão de novos privilégios. Em março de 1507, o rei
determinou que em qualquer momento os cristãos-novos poderiam sair do reino
livres e levando todos os seus bens,
assim
como isentos do inquérito por crimes contra a fé. Em 1512, essa ação do rei foi
prorrogada por mais dezesseis anos. Com esses acontecimentos, certamente o ano
de 1506 foi um sinal, um balde de água fria no projeto de D. Manuel para a
integração entre cristãos-novos e cristãos velhos.
O
terceiro e o mais importante fator de mudança nas relações entre os cristãos
novos e velhos teve início quando D. João III assume o poder em 13 de dezembro
de 1521, casando-se em 1525 com D. Catarina, irmã de Carlos V, sendo que este
havia casado com a irmã de D. João III, e nesse momento os ataques aos
cristãos-novos se intensificaram e as tentativas de introdução do Tribunal da
Inquisição passaram a ser um dos objetivos do governo. Em 1525 a Corte se
preparava para reagir às especulações feitas pelos cristãos-novos com relação
ao fornecimento do trigo. Essa era uma acusação grave. Assim como outros fatos,
entre eles o tremor de terra em 26 de Janeiro de 1531, o que levou a uma parcela
dos cristãos a acreditarem que era um castigo pelas heresias dos
cristãos-novos, apesar das explicações de Gil Vicente de que o fato ocorrido
era um fenômeno da natureza.
Esses
acontecimentos geravam reações dos cristãos velhos com relação aos conversos. Segundo
João Lúcio de Azevedo, mesmo a Inquisição teoricamente ainda não agindo, em Olivença,
no bispado de Ceuta, cinco hebreus foram queimados por seguirem os preceitos judaicos.
Em 1530, D. João III encaminhou instruções ao doutor Brás Neto, seu embaixador em
Roma, para solicitar a bula que iniciaria a Inquisição em Portugal aos moldes
da Inquisição de Castela. Em 17 de dezembro de 1531, o Papa Clemente VII
expediu a bula, a qual possibilitava o estabelecimento da Inquisição,
especificando as atribuições de frei Diogo da Silva como inquisidor geral. Os
cuidados estavam ligados ao criptojudaismo e o luteranismo. Como Diogo da Silva
renunciou ao cargo, as tramitações para um novo inquisidor demoraram muito
tempo, enquanto isso, Duarte da Paz, representante dos cristãos-novos em Roma,
colocava em prática as articulações políticas para a defesa dos interesses dos
seus. Em 17 de
outubro de 1532, um breve foi publicado, suspendendo temporariamente a bula de
dezembro de 1531 que dava poderes para o estabelecimento do Tribunal, suspendendo,
assim, as ações do inquisidor-mor e bispos. A justificativa do Papa era na direção
de uma defesa do uso da misericórdia ao invés do castigo, para mostrar aos conversos
ainda impuros o verdadeiro caminho da luz, da pureza da fé.
As
coisas tomaram novo rumo com a morte de Clemente VII (1534), que foi sucedido
por Paulo III, o qual assumiu o Papado com grandes problemas, dentre eles, a decisão
da concessão ou não do estabelecimento da Inquisição em Portugal. Paulo III não
tinha intenção de opor-se a bula de Clemente VII, bem como apoiara a
continuação dos privilégios concedidos aos cristãos-novos, tais como não
confiscar seus bens e tratá-los como presos comuns, mantendo por vinte dias uma
denúncia, sendo depois revogada.
D.
João III, em uma carta de instruções a seu sobrinho Dom Martinho (1525), embaixador
substituto de Brás Neto junto ao Papa, declarava que os cristãos-novos não estavam
seguindo a fé cristã, pois não participavam das celebrações dominicais, não
faziam enterro cristão, não pediam extrema unção e não mandavam rezar missas
por suas almas. Com isso, a aparência de bons cristãos não se mantinha,
portanto, pedia intervenção junto ao Papa, pois, os cristãos-novos não viviam
“limpamente”. Assim sendo, declara: “E
em tanta maneira sou disso certificado que eu me acho obrigado a fazer nisso
aquella diligencia que devo a Nosso S.or, e que portanto suplico e peço muito
por mercê a Sua Sanctidade que me queyra outorgar e cónceder Bullas e provisões
para se fazer Inquisição geral em todos meus Reynos e senhorios (...). Com
isso, combateria os cristãos-novos que viviam na falsa fé da lei mosaica,
solicitando autorização para o uso do mesmo modelo de Inquisição instaurado em
Castela. Declara ainda, na mesma carta, que os condenados pela Inquisição teriam
seu bens disponíveis para herança dos seus como queria o papa Paulo III,
retendo-se e apenas os custos do
processo. Depois de insistentes disputas e da intervenção do imperador Carlos V
e do cardeal Santiquatro, em 23 de maio de 1536, na bula Cum ad nihil magis foi
publicada, por Paulo III, o estabelecimento da Inquisição, que em seu teor sofreu
apenas algumas alterações feitas da bula anteriormente publicada em 1531. A
bula que a autorizava a Inquisição foi solenemente proclamada no domingo de 22
de Outubro de 1536 e lida em público no púlpito da catedral em Évora. A bula
que protegia os judaizantes foi extinta, exceto o breve referente a Duarte da
Paz, o qual garantiria que sua família emigrasse de Portugal, removeria o
Núncio e, com isso, a Inquisição começaria o seu exercício. A historiografia
estabeleceu uma polêmica sobre a abertura da Inquisição e suas motivações, no
qual D. João III é condenado por uma parte da historiografia e como bom governante
por outra. Entre os que condenam a atuação de D. João III, está a obra História
da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Alexandre Herculano (1810-1877).
D. João III é considerado como fanático, por ter introduzido a Inquisição e apoiado
a Companhia de Jesus. Oliveira Martins (1845-1894) argumenta em outra direção
em sua obra História de Portugal. Declara que a ação de crueldade que
condenaria a Inquisição teria sido motivada pelo fato de se tornar poder de
Estado, como instituição particular, seguindo uma Razão de Estado. Para esse autor, “Os desejos do rei e dos seus
acólitos eram sinceros e desinteressados; mas o estado moral das classes diretoras
era tal, que a instituição apareceu podre, desde todo o princípio”. Isso
isentou, sob seu ponto de vista, as torturas e a fogueira, como fatores que
condenariam a instituição, pois esses eram processos comuns ao direito penal
contemporâneo, além de que os processos de heresia anteriormente julgados pelos
bispos, a intensidade da crueldade estaria na mesma proporção. Ao lado da
historiografia que defende a contribuição da Inquisição e da Companhia de Jesus
como fatores positivos do governo de D. João III, estão autores como: O
Visconde de Santarém (1791-1855) que descreveu D. João III como um diplomata
com grande habilidade para a condução do Reino e desenvolvimento da força da
expansão ultramarina.
Na
tradição defensora do Estado Novo segue Alfredo Pimenta (1882-1950), que considerava
D. João III como notável homem de Estado e defendia o papel da Inquisição, assim
como também defendia João Ameal (1902-1982).29 Enquanto que Braamcamp Freire (1849-1921),
Mário Brandão (1900-1994) e Silva Dias (1916-1994) consideravam D. João III como
um grande incentivador e mecena da cultura no Reino. Entretanto, para Joaquim
Ferreira D. João III “carecia de dinamismo político”. A sua insistência em
implantar a Inquisição, era motivada pelo fanatismo de aversão ao credo mosaico,
mantendo o rancor pelo suposto deicídio cometido pelos judeus e pelo apoio a introdução
da Companhia de Jesus, que teria neutralizado o crescimento do humanismo. Em
contrapartida, Joaquim Veríssimo Serrão declara que não vê em D. João III um
homem genial, mas destaca que a crise do império não pode lhe ser atribuída,
mas sim, ao fraco sistema de governo, o qual tinha grande deficiência de
conselheiros, fraca administração da máquina, pouco dinheiro em caixa, além de
questões de ordem natural, como as epidemias e as crises de fome.
Na
historiografia mais recente destacam-se as interpretações de historiadores como
Elisabeth Hirsch, António Borges Coelho, Antonio Sérgio, Jean Delumeau e Maria
Ferro Tavares. Para Elisabeth Hirsch o problema econômico estava na base da
Inquisição. Para ela a Inquisição tinha o papel de aliviar a dificuldade
financeira presente em Portugal nesse momento, contestando, assim, as teses de
Alexandre Herculano sobre o papel da Inquisição como consequência da crueldade
de D. João III e de sua falta de habilidade em governar, assim como as
hipóteses de que Portugal obteve a autorização para introduzir a Inquisição porque
D. João III forneceu possibilidades para a abertura do Colégio de Jesuítas em Portugal.
Antonio Borges Coelho também enfatiza o problema econômico. Ele afirma que a entrada
da Inquisição em Portugal ocorreu por motivo de falência da feitoria que tinham
em Flandres, grande centro comercial, e pelo consequente abandono de um grande
número de praças que Portugal tinha na África. Portugal chegou na década de
1540 com as finanças régias entrando em colapso. Antonio Sérgio, assim como Hirsch e Coelho,
concorda que a Inquisição é um problema de ordem econômica. Entretanto, explica
que a economia estava intrinsecamente ligada aos cristãos-novos, pois estavam
envolvidos os ofícios manuais, tratos mercantis e ligado nas agências
lucrativas, o que evidencia a papel destes conversos na sociedade portuguesa e
excitava a inveja dos cristãos velhos. Para Antonio Sérgio, esse fato teria
levado D. João III a pedir a presença da Inquisição em Portugal, para enquadrar
os cristãos-novos na lei.
Contrário
a essas perspectivas, Jean Delumeau alerta para o fato de que em muitos casos,
a Inquisição prendeu conversos que não eram ricos, obrigando-os a pagar todas
as custas dos processos. Onde, então, estaria o interesse econômico? Certamente
não nesses casos, pois, para Delumeau, essa era uma intensificação da
cristianização, fato que consequentemente difundiu o antijudaismo e contradisse
toda uma historiografia economicista, ao mostrar que a economia não poderia ser
pensada como fim último nos fatores relacionados ao antijudaismo e à
Inquisição.36 De acordo com o autor, com a instauração da Inquisição muitos
cristãos-novos fugiram de Portugal, não apenas pelo fator econômico, pois muitas comunidades judaicas
não tinham como papel marcante o elemento econômico. Muitos cristãos-novos
deixavam Portugal por entenderem que na Península a heresia mais perseguida era
o judaísmo e fora dela a preocupação maior era com a Reforma. Maria Ferro
Tavares não concorda diretamente com nenhum dos autores acima apresentados.
Para ela, não é possível pensar apenas o problema econômico, pois ele está diretamente
conectado a uma questão política, portanto é preciso retirar todo o peso da culpa
pelo estabelecimento da Inquisição de D. João III, pois não iria até esse
extremo o “absolutismo” desse monarca. Também não é possível pensar apenas no
elemento cultural e religioso, pois motivações diversas estão incluídas nesse
processo. Com isso, Tavares
quis
dizer que a complexidade desse fenômeno inquisitorial é muito grande para ser reduzido
a apenas uma vertente, o que nos faz concordar com ela. Para essa autora, a Inquisição
foi “desejada” pelos cristãos velhos, sendo uma consequência natural, pois o sentimento
antijudaico estava introjetado havia muito tempo e a religião permanecia presente
em todos os setores da vida das pessoas. Com o estabelecimento da Inquisição em
1536 e a remoção do Núncio que protegia os judaizantes, três inquisidores foram
nomeados pelo Papa: o bispo de Coimbra, o bispo de Lamego e o bispo de Ceuta,
além de mais um que seria indicado pelo Rei. Os primeiros tribunais a iniciarem
suas atividades foram os de Évora, Coimbra e Lisboa, sendo logo depois criados
os de Lamego, Tomar e Porto, mas logo extintos, porém, em todos houve sentenças
de morte. Nos primeiros três anos, a Inquisição teve que seguir os
procedimentos iguais aos processos cíveis, sendo que nos primeiros dez anos os
bens dos condenados deveriam ser entregues aos seus parentes mais próximos ao
invés de serem tomados pelo fisco. Paulo III resolveu dispor a Bula para uma
nova comissão de exame: Cardeal Ghinuccie, Cardeal Jacobacio e Cardeal
Simonetta. Estes declararam que a bula era ilegal, portanto, necessitava ser
alterada. Com isso, um novo Núncio foi enviado a Portugal para controlar as
ações do governo referente aos criptojudeus, sendo indicado Hieronymo Ricenati
Capodiferro, o qual relataria à Cúria qualquer ação arbitrária e, assim sendo, revogaria
a licença da instalação da Inquisição. Paulo III, com isso, explicitava seu desinteresse
pela instalação do Tribunal. Em fevereiro de 1537, Capodiferro assumiu seu cargo
em Lisboa, em um momento que não paravam de chegar súplicas à Cúria referentes à
violência que sofriam os cristãos-novos em Portugal. Capodiferro defendia os cristãos-novos,
fazendo com que os detidos fossem soltos e ajudando-os a fugir, fato que fez D.
João III querer excluí-lo da Cúria em Lisboa.
Para
Tavares, o surgimento de um grande número de falsos Messias como Bandarra e
Luís Dias, teria levado à mudança do Tribunal da Inquisição em 1537, de Évora
para Lisboa. Por outro lado, instaurou-se uma calmaria na sociedade até o mês
de fevereiro de 1539, com poucas torturas e perseguições, fato que
possibilitava a fuga de muitos criptojudeus. Foi um período de moderada ação do
tribunal sob a presidência de Diogo da Silva e João de Melo, sendo que a grande
maioria de penitências eram de cunho espiritual, embora públicas. Os conflitos
entre os cristãos-novos e os cristãos velhos voltaram com grande intensidade
por conta do caso de fevereiro de 1539. Nessa data, foram fixados nas portas de
várias Igrejas de Lisboa, como também da Sé, papéis que em seu conteúdo negavam
os princípios da fé católica e declaravam a vinda do Messias. Esse fato
inflamou ainda mais o fanatismo religioso dos cristãos velhos contra os
judaizantes. Um dos supostos responsáveis, um cristão-novo de nome Manuel da
Costa, foi julgado e condenado a ser queimado na fogueira. Com esse fato, o
Inquisidor-mor sofreu pressões do Rei, motivo que o levou a pedir demissão,
tendo já idade avançada. Em 22 de Julho de 1539, foi substituído pelo irmão
mais novo do Rei, o Infante D. Henrique. Com vinte e sete anos, D. Henrique assume
o posto de Inquisidor-mor, permanecendo no cargo por quarenta anos e dando início
aos autos-de-fé em Lisboa, em 20 de setembro de 1540. Com isso, a ação do
Tribunal voltou com toda a força, enchendo as prisões e contratando novos
funcionários.
Na
primeira fase, a Inquisição seguiu as normas com uma perseguição considerada moderada.
Somente iniciou a fase de uma Inquisição moderna com a bula Meditatio cordis, de
16 de Julho de 1547, pondo fim à Inquisição que procedia desde 23 de maio de
1536, devendo-se esperar dez anos para que o tribunal pudesse agir livremente,
sem o controle do núncio e com testemunhas não identificadas publicamente.
Nessa primeira fase, os sinais para identificação dos suspeitos de judaísmo
compunham um catálogo de delitos, dentre os quais destacam-se: vestir roupa
branca e usar enfeites nos dias de sábado, não trabalhar aos domingos, limpar a
casa na sexta-feira, não comer carne de porco e peixe com pele. Esses eram
alguns dos delitos que deveriam ser denunciados aos Inquisidores. Em 20 de
Setembro de 1540, foram condenados os primeiros cristãos-novos, fato que se
repetiu em 23 de outubro de 1541. Este processo foi conduzido por João de Melo
– conhecido pelo seu ódio à “raça judaica” – condenando, então, o sapateiro
Gonçalo Eanes Bandarra, o qual era suspeito de judaísmo, dentre os argumentos
de acusação usados estão as referencias à Bíblia introduzidas em suas trovas
proféticas, fonte das formulações da crença sebástica. Pouco tempo depois, o
Tribunal de Évora, que tinha jurisdição sobre Alentejo e Algarve, condenou em
seu primeiro auto Luís Dias, um sapateiro de Setúbal que se julgava Messias.
Apenas em 1541, o cardeal D. Henrique criaria os distritos inquisitoriais. Com
a ação mais enérgica da Inquisição, eram constantes os navios que seguiam em
direção à Turquia, Síria, assim como Ferrara e Veneza, na Itália. As rotas de
fuga incluíram como destino também a Inglaterra, a França e Flandres,45 grandes
centros comerciais. Assim como Amsterdã, grande reduto de judeus portugueses,
considerada como “segunda Jerusalém”.
Pode-se
dizer, portanto, que a conversão forçada, os levantes antijudaicos e o processo
de instalação da Inquisição marcaram a mentalidade dos lusitanos. Esses fatores
intensificaram profundamente as diferenças entre os cristãos-novos e os
cristãos velhos, afastando a possibilidade de uma integração e da constituição
de um Reino religiosamente homogêneo.