Marcha da Família com Deus pela
Liberdade foi o
nome comum de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e
8 de junho de 1964 no Brasil em resposta a uma suposta ameaça comunista
representada pelo discurso em comício realizado pelo então presidente João
Goulart em 13 de março daquele mesmo ano.
Na data, o mandatário assinou dois
decretos, permitindo a desapropriação de terras numa faixa de dez quilômetros
às margens de rodovias, ferrovias e barragens e transferindo para a União o
controle de cinco refinarias de petróleo que operavam no país. Além disso,
prometeu realizar as chamadas reformas de base, uma série de mudanças
administrativas, agrárias, financeiras e tributárias, garantindo o que chamava
de justiça social. Fundamentados na função social da terra e empreendimentos
urbanos, demandas antigas e de ampla penetração na sociedade da época. Com
discurso insuflando os sargentos a amotinar-se nos quartéis, Goulart antecipou
uma pretensa reforma urbana e a implementação de um imposto sobre grandes
fortunas. No contexto da Guerra Fria e da polarização entre os Estados Unidos e
a União Soviética, estas ideias foram vistas como um passo em direção à
implementação de uma ditadura socialista.
Vários
grupos sociais, incluindo o clero, o empresariado e setores políticos diversos
se organizaram em marchas, levando às ruas mais de um milhão de pessoas com o
intuito de derrubar o governo Goulart. A primeira das 49 marchas aconteceu no
dia 19 de março – dia de São José,
padroeiro das famílias – em São Paulo e congregou entre 300 e 500 mil
pessoas. Ela foi organizada por grupos como Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), União Cívica Feminina
(UCF), Fraterna Amizade Urbana e Rural, Sociedade Rural Brasileira, dentre
outros grupos, recebendo também o apoio da Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e do controverso Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Na ocasião, foi distribuído o
"Manifesto ao povo do Brasil" pedindo o afastamento de Goulart da
presidência. Após a deposição do presidente pelos militares em 1 de abril, as
marchas passaram a se chamar "Marchas da Vitória". A maior delas,
articulada pelo CAMDE no Rio de Janeiro, levou cerca de um milhão de pessoas às
ruas em 2 de abril de 1964.
Mobilização
Texto
do Manifesto ao Povo do Brasil
"O povo está cansado das
mentiras e das promessas de reformas demagógicas. Reformas sim, nós a faremos,
a começar pela reforma da nossa atitude. De hoje em diante os comunistas e seus
aliados encontrarão o povo de pé. [...] Com Deus, pela Liberdade, marcharemos
para a Salvação da Pátria!"
A
Marcha foi idealizada pelo deputado
federal Antônio Sílvio Cunha Bueno, do Partido Social Democrático de São
Paulo, como uma espécie de resposta conservadora ao comício da Central, com o
intuito de mostrar aos articuladores do golpe que havia uma base social de
apoio ao movimento deles. Teve como inspiração a pregação anticomunista do
padre irlandês Patrick Peyton, fundador do movimento Cruzada do Rosário pela
Família. Cunha Bueno procurou empresários e o vice-governador de São Paulo,
Laudo Natel, para que oferecessem apoio logístico a sua empreitada. O então
governador de São Paulo, Ademar de Barros, arrecadou dinheiro para comprar
caminhões para a Força Pública (atual Polícia Militar do Estado de São Paulo) e
garantir a ordem da Marcha. Natel recomendou a Cunha Bueno que procurasse a
freira Ana de Lourdes, neta de Ruy Barbosa, para arregimentar lideranças
femininas. A religiosa viu ameaças à fé católica no discurso de Goulart, que
afirmou que "não é com Rosários que se combatem as reformas". Além da
reconhecida perseguição socialista à fé cristã. Um projeto de controle da vida
humana que transformou os países da antiga União Soviética em recordistas no
número de suicídios.
A
manifestação originalmente se chamaria "Marcha
de Desagravo ao Santo Rosário", mas Ademar ponderou que o nome excluía
outras religiões e que a oposição ao governo Goulart deveria permanecer unida
para conseguir depor o presidente. A deputada Conceição da Costa Neves propôs o
Marcha da Família com Deus pela
Liberdade. O governador paulista se fez representar no trabalho de
convocação da marcha através de sua mulher, Leonor Mendes de Barros. O
movimento rapidamente conquistou adesões, mas faltavam lideranças femininas. O
IPES, um centro de estudos, ofereceu cursos nos quais mulheres recebiam aulas
sobre como pregar a união da família contra o comunismo. Em seguida, elas eram
orientadas a esclarecer as amigas e seus próximos contra a "ameaça
vermelha".
Trinta
associações de empresários assinaram o manifesto de convocação à Marcha,
publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Alunos do Instituto Presbiteriano
Mackenzie e representantes da FIESP formaram delegações de simpatizantes à
causa para comparecerem à Marcha. Simultaneamente, eram distribuídos panfletos
entre a população, enquanto o clero fazia publicar mensagens dirigidas ao
Presidente. O publicitário José Carlos Pereira de Sousa criou palavras de
ordem, faixas e cartazes para o evento, com os dizeres "Vermelho bom, só o
batom", "Um, dois, três, Jango no xadrez", "Abaixo os
imperialistas vermelhos" e "Verde e amarelo, sem foice nem
martelo", enquanto os seguidores do padre Peyton adotaram o lema "A
família que reza unida permanece unida".
As marchas
Primeira marcha em São Paulo
"Que sejam feitas reformas,
mas pela liberdade. Senão, não. Pela Constituição. Senão, não. Pela consciência
cristã do nosso povo. Senão, não."
Auro
de Moura Andrade, então presidente do Senado, em discurso durante a Marcha de
19 de março de 1964 em São Paulo.
O
grupo de manifestantes, que começou a se formar desde as 14:00 horas, saiu da
Praça da República às 16:00 horas. Antes e durante a manifestação foram
distribuídas bandeirinhas do Brasil e o texto do "Manifesto ao Povo do
Brasil". Uma hora depois, o grupo chegou à Praça da Sé, onde o palanque
estava montado. A marcha percorreu a rua Barão de Itapetininga, a Praça Ramos
de Azevedo, o Viaduto do Chá, a Praça do Patriarca e a rua Direita antes de
chegar à Praça da Sé.
Na
Praça da Sé, Leonor hasteou a bandeira enquanto a banda da Força Pública tocava
o Hino Nacional. A Missa pela Salvação da Democracia, realizada pelo padre
Peyton, deu início ao evento, no qual vinte inscritos falaram por cinco minutos
cada um. O primeiro orador foi Amaro Cesar, seguido pelo senador Padre Calazans
(UDN-SP) Cunha Bueno; Geraldo Goulart, veterano da Revolução Constitucionalista
de 1932; Carolina Ribeiro, ex-secretária de educação de São Paulo; os deputados
federais Arnaldo Cerdeira (PSP-SP), Herbert Levy (UDN-SP) e Plínio Salgado
(PRP-SP), este último idealizador do integralismo no Brasil; o prefeito de
Campinas, Ruy Hellmeister Novaes (PSB); os deputados estaduais Camilo Aschar
(UDN-SP), Conceição da Costa Neves (PSD-SP) e Everardo Magalhães (PDC-RJ); e o
deputado estadual Ciro Albuquerque (PSP), presidente da Assembleia Legislativa
de São Paulo, também discursaram. Sempre que algum orador pronunciava os nomes
de Goulart, Leonel Brizola ou Fidel Castro, a multidão reagia com vaias. Auro
de Moura Andrade (PSD-SP), então presidente do Senado, realizou o último
discurso. Dentre outras personalidades ilustres presentes estavam Carlos
Lacerda (UDN), governador do estado da Guanabara, que não discursou, e a
apresentadora de televisão Hebe Camargo.
Apesar
da grande adesão, a Marcha foi alvo de um protesto. Durante a passeata, o
deputado estadual Murilo de Sousa Reis (PTN-SP) efetuou a interdição de um
prédio comercial, na rua Barão de Itapetininga, e, acompanhado por policiais,
revistou todas as salas do mesmo. A decisão de revistar o edifício ocorreu após
um balde com água ter sido atirado de um dos estabelecimentos nos
manifestantes. O deputado efetuou a detenção do responsável e de outro
indivíduo que o acompanhava. Ambos foram conduzidos ao Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) e liberados na noite do mesmo dia. A Força Pública
também deteve, na Praça da Sé, dois jovens que portavam dentro de um carro uma
grande quantidade de ovos. Segundo transeuntes, os rapazes tinham a intenção de
jogar os ovos na multidão. Ambos foram detidos e encaminhados ao DOPS. Mais
tarde foi constatado que as caixas de ovos se destinavam a um supermercado e os
dois foram liberados.
A
Marcha, entretanto, foi basicamente organizada e realizada por cidadãos da
classe média e das classes mais abastadas. O embaixador dos Estados Unidos no
Brasil, Lincoln Gordon, e um dos articuladores junto aos militares brasileiros
do golpe de estado, apontou, em telegrama ao Departamento de Estado: "A única nota destoante foi a evidente
limitada participação das classes mais baixas na marcha". Seu adido
militar, Vernon Walters, atestou haver uma falta de popularidade do movimento e
um receio de que o golpe contra João Goulart fracassasse por falta de apoio
popular.
Após
a marcha realizada na capital, outras manifestações semelhantes ocorreram no
interior do estado de São Paulo. Em 21 de março foram realizadas marchas em
Araraquara e Assis; no dia 25, cerca de 80 mil pessoas marcharam em Santos; no
dia 28 os moradores de Itapetininga realizaram sua marcha e, no dia 29, ocorreu
marchas em Atibaia, Ipauçu e Tatuí. A marcha aconteceu também em outros
estados. No dia 24, foi realizada uma marcha na cidade de Bandeirantes no
Paraná. Segundo o livro A ditadura militar no Brasil - A história em cima dos
fatos, ocorreram 49 marchas em todo o país entre 19 de março e 8 de junho de
1964, tendo as marchas após o golpe recebido o nome genérico de Marcha da
Vitória.
Marcha da Vitória no Rio
A
Marcha convocada para o dia 2 de abril de 1964 no Rio de Janeiro passou a ser
conhecida como Marcha da Vitória após a bem-sucedida deflagração do golpe de
estado em 31 de março, que comemoraram a deposição de Goulart pelos militares
em passeata que saiu da praça da Igreja da Candelária às 16:00 horas rumo à
Esplanada do Castelo. Dentre as instituições que apoiaram esta Marcha estavam a
Assembleia de Deus, a Associação Cristã de Moços (ACM), a Associação de Pais e Mestres, o CAMDE – (Campanha da Mulher pela
Democracia), criada em 1962 no
auditório do jornal O Globo – a Congregação de Belém, a Cruz Vermelha
Brasileira, a Falange Patriótica, o Grupo de Ex-Combatentes da FEB e a
Sociedade Cristo Redentor.
A
ideia da Marcha partiu do vigário de Ipanema, frei Leovigildo Balestieri, do
engenheiro Glycon de Paiva e do general Golbery do Couto e Silva, sendo criada
por Amélia Molina Bastos, irmã do general Antônio de Mendonça Molina, do setor
de informação e contrainformação do Ipês.
O clero
Tendo
o Brasil a maior comunidade católica das Américas, a maneira encontrada pelos
grupos conservadores e progressistas para fazer o povo se mobilizar foi através
da religião. As camadas conservadoras da Igreja Católica ignoravam as mensagens
de cunho social do papa João XXIII, sendo que agentes religiosos colaboraram
com o golpe, inclusive como delatores, por considerar que o regime militar
frearia o "comunismo ateu". Elas encontraram respaldo no plano
Caritas ("caridade" em latim), financiado por católicos de países
ricos e implantado em quase todas as dioceses do Brasil. O Caritas buscava
atenuar os efeitos da crise socioeconômica que atingia o país através da
distribuição de alimentos e medicamentos mas, ao mesmo tempo, doutrinava os
pobres a se contrapor aos ideais revolucionários, em alta desde o sucesso do
grupo que promoveu a Revolução Cubana de 1959.
O
exemplo mais notório do uso da religião contra o presidente Goulart se deu no
final de 1963, quando o então arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime de Barros
Câmara, trouxe ao Brasil o padre Patrick Peyton, pároco estadunidense de origem
irlandesa conhecido por sua pregação anticomunista. Com o lema "a família
que reza unida permanece unida", Peyton promoveu uma série de eventos
públicos de massa para os fiéis brasileiros em que associava os males do mundo
aos "políticos ateus que querem mudar a ordem natural das coisas".
Segundo Darcy Ribeiro, ministro da Casa Civil de Goulart, Peyton inaugurou as
ações de massa contra o governo brasileiro. Percebendo a agitação política
promovida pelo padre, Ribeiro chamou-o a Brasília para convencê-lo a rezar o
terço com o presidente. A missa do padre para o presidente foi gravada e exibida
na televisão. Apesar da tentativa de minimizar o efeito da pregação
anticomunista do padre, o terreno para ações de massa contra o governo já
estava preparado. Anos mais tarde,
Peyton foi apontado por historiadores norte-americanos como agente da CIA, especialista
em levantar as massas católicas contra o comunismo ateu em nome da Virgem
Maria.
Por
outro lado, os setores progressistas, cujo maior ícone era dom Hélder Câmara,
bispo auxiliar do Rio de Janeiro e mais tarde arcebispo de Olinda e Recife, se
puseram a favor do enfrentamento dos problemas sociais e do engajamento do povo
na luta por melhores condições de vida. Essa visão, no entanto, só começou a
ganhar força entre os membros da Igreja no Brasil a partir da década de 1970,
quando do aumento da repressão por parte do regime militar contra seus
opositores. A Igreja Católica, a partir de então, passou a pender em peso
contra o regime militar, em especial na figura de dom Paulo Evaristo Arns,
arcebispo de São Paulo, que inicialmente apoiou o golpe militar.